Variantes do nonsense

Comecemos este percurso de semântica lacaniana pelas primeiras formulações que Lacan introduz na psicanálise. Estas formulações constituem o que Lacan estabeleceu como os antecedentes de seu ensino, ou seja, são anteriores ao manifesto Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise – o texto inaugural do ensino lacaniano, de 1953.

Em termos gerais, trata-se de reformular o narcisismo freudiano a partir da fase do estágio do espelho, assim batizada e introduzida na psicanálise pelo próprio Lacan. Ele apresenta esta noção em 1936, no congresso de Marienbad; mas uma vez que desta primeira versão não se tem nenhum registro, tomaremos como referência, para o nosso comentário, o texto apresentada no Congresso Internacional de Psicanálise em Zurique, em julho de 1949, que leva o nome de O estádio do espelho como formador da função do eu.


O estádio do espelho se desenvolve entre os 6 e os 18 meses; carateriza-se pelo fato de que a criança, “numa idade em que, por um curto espaço de tempo, mas ainda assim por algum tempo, é superada em inteligência instrumental pelo chimpanzé, já reconhece a sua imagem no espelho”. Este reconhecimento é um efeito do dinamismo libidinal que a sua própria imagem produz; mas devemos entender este processo, não como um mero reconhecimento, senão como uma identificação “no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem”.

A assunção desta imagem não só constituirá o eu como uma projeção imaginária, como também o determinará com a função de desconhecimento. Isto deve-se a que, pela imagem que o espelho lhe devolve, acredita ter uma unidade que não se condiz com a prematuração de seu corpo real, que se encontra na impotência motriz e na dependência da amamentação. 

Lacan toma a idéia de que o ser humano nasce prematuro e  fisiologicamente inacabado do anatomista holandês Louis Bolk. Esta situação de desamparo lhe serve para situar uma fissura ontológica e originária na cria humana. Tal fissura ontológica estabelece uma hiância, uma distância entre a experiência vivida do corpo e a sua forma salvadora no espelho. Por isto, é no movimento que vai da impotência motriz à forma salvadora apresentada pelo espelho que se estabelece a identificação do sujeito com a sua própria imagem. Mas como a hiância é de estrutura, nenhuma imagem a pode suturar: o movimento identificatório continua; ele poderia, de resto, continuar indefinidamente, agora com as imagens que vestem os diferentes outros que povoam o seu entorno social.

Para definir as imagens com as quais o sujeito se identifica, Lacan introduzirá o termo imago, que Jung havia apresentado na psicanálise. É importante ressaltar que o termo imago articula uma dupla função. Por um lado, imago é a imagem totalizante, a Gestalt salvadora; por outro lado, essa mesma imagem é uma imagem tipificada, simbolizada. É preciso lembrar que estamos aqui nos antecedentes do ensino de Lacan, ou seja, num Lacan que ainda não trabalha com a distinção dos registros simbólico e imaginário, e que portanto precisa recorrer ao termo imago para dar conta do duplo valor das imagens que capturam o sujeito. 

Nesta primeira perspectiva que Lacan propôs, encontramos um sujeito marcado por uma fissura ontológica irremediável, e que encontra na dialética identificatória não o seu ser, mas apenas véus, ou seja, semblantes para cobrir esta fissura. Por isto, o processo identificatório não se detém; como diz Lacan, tal processo “só se unirá assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de eu, sua discordância de sua própria realidade”.


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